O problema da Verdade

Pouco tem a natureza humana de mais inquietante do que a ideia da verdade, essa ideia-lume que funde ciência com fé numa espécie de clarão intemporal e vertiginoso. Desde a alvorada dos tempos modernos, poucas coisas estimularam tanto os homens quanto a procura da verdade, a descoberta dos segredos do universo, a decifração das leis a que estaríamos por natureza obrigados. Dessa moderna procura foram-se progressivamente excluindo as ancestrais perguntas sobre os fins; foi-se perdendo de vista o tronco do problema, e foi-se esquecendo a própria natureza do ser que procura, que, no caso do amor, Luís de Camões vaticinava poder transformar-se na coisa procurada. O que levaria no limite alguém um dia a poder dizer “A verdade sou eu”, como só Deus poderia dizer de si próprio.
Tão temida como desejada, a verdade é fonte de ancestrais arrepios. Os liberais, por exemplo, viram na procura da “verdade absoluta” uma ameaça perigosa que podia levar ao totalitarismo. Para os crentes de muitos credos a verdade é algo de transcendente, sendo levada a coincidir com Deus e com a sua Palavra. Os cristãos, para quem a gula é pior vício do que a mentira, tendem a relativizar as “verdades humanas”, tão frágeis quanto passageiras. E pior do que tudo: fomentadoras do Ódio. Mas outros há, como Nietzsche, que relativizam a verdade e tentam, às vezes sem o perceber, impor como verdade absoluta o facto de a verdade ser relativa, o que não deixa de ser curioso. Perigoso também quando, admitindo que a verdade inexiste ou se multiplica, passamos a acreditar que tudo o que dissermos pode vir um dia a tornar-se verdade.
Escreveu-se e disse-se um mar de coisas sobre a verdade. Que ela dói, pois tal como as roseiras possui espinhos; que é virtuosa e filha legítima do tempo, não da autoridade; que é imutável e perpétua, e sempre a mesma em todas as suas partes. Que pode ser combatida mas não vencida; que é manca, mas chega sempre a tempo; ou que é como o azeite, que vem sempre à tona de água. Mas, talvez mais importante do que a substância ou o significado último da verdade, o que nos leva invariavelmente ao campo das teorias, seja perceber-se que sempre existiram homens interessados em manipulá-la a seu jeito.
O problema da verdade é quando a verdade se contorce e se vira contra eles como um cão enfurecido com o dono. A verdade não é sempre boa amiga ou sequer boa companheira. O homem moderno, exteriorizado e sem mundo, despejado na tela para consumo instantâneo; aquele homem espectral sonhado no aconchego de uma bela estória; criado como obra de arte apenas para ser admirado, é como se morresse de cada vez que a tela se perturba, de cada vez que alguém tosse ou espirra fazendo com que a beleza num instante se esvaia, contaminada de realidade. Há que compreender esta terrível sina do homem-plástico que o afasta constantemente da razão. Eis porque é prudente não nos desabituarmos demasiado do contacto com a realidade que é, embora tantas vezes doa. Mas também prudente evitarmos a flagelação. As paixões humanas, tal como os vícios, corrompem a verdade, forçando-a à representação. Eis o eterno dilema da História: escolher entre magoar e ser-se confortável. As almas incomoda-as terem de se deter para um julgamento. É sempre tentador adiá-lo. Esperar que o tempo perdoe ou esqueça. É normal e é humano que assim aconteça. Atiçar demasiado as almas é atiçar a Besta que há nelas, levando a que esta se revele em toda a sua extensão e crueldade. Mas isentar as almas do julgamento pela razão é de certo modo consentir em que são perfeitas as suas imperfeições. O erro paira em ambos os lados dessa trincheira. A verdade só é verdadeiramente útil se permitir o equilíbrio.
Valdemar Rodrigues in dn.pt