Ética e Direitos dos Animais - por Helder Filipe Azevedo

Existe um antigo mito grego, legado à posteridade pelo poeta romano Ovídio, no livro III da Metamorfose, que nos fala de Narciso, um jovem de rara beleza e orgulho desmesurado, nascido nas montanhas da Beócia e filho de um deus e de uma ninfa. Num certo dia, vitimado por uma vingança divina, Narciso reclinou-se sobre um rio para beber água, contemplou a sua própria imagem e apaixonou-se por esse reflexo de si mesmo. Ao contrário da fábula, uma narrativa figurada que encerra sempre no texto uma determinada moral, o mito é mais profundo, pretendendo ser uma demonstração pura, sem intervenção da razão e do juízo ético, de aspetos elementares e originários da existência humana, na sua dimensão individual e coletiva. O jovem Narciso é então condenado a desejar o inalcançável, a não ter afeto por ninguém a não ser pela sua imagem e, dessa forma, condenado a ser um homem só, surdo para o mundo externo.
Nas primeiras décadas do século XX, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, criou o conceito de feridas narcísicas da humanidade. Como o próprio nome indica, feridas narcísicas remete-nos para o mito de Narciso e a ideia de um homem deslumbrado consigo próprio, numa experiência solipsista e num mundus totalmente antropocêntrico. Freud identificou na história três momentos em que a humanidade foi ferida no seu desmedido orgulho. O primeiro momento chegou-nos com Copérnico e a sua revolução científica. Em 1543, com a obra De revolutionibus orbium coelestium, Nicolau Copérnico confrontou a humanidade com aquela que Freud viria a chamar de primeira ferida narcísica. Afinal, demonstrava-se que esta parte do universo onde moramos funciona num sistema astronómico heliocêntrico e não num sistema geocêntrico. É o sol e não a terra que está no centro do universo e as implicações em termos éticos, científicos e religiosos fizeram-se sentir no próprio espírito da história. O ser humano vivera até então numa espécie de estádio teológico – reforçado com o sentido do senso comum – de que a terra seria um elo fundamental no trinómio Deus-Mundo-Homem, e que, enquanto criação divina, seria o centro do universo. Neste desvelamento, há claramente uma mudança de paradigma na relação do homem consigo e com a existência, resultando, defende Freud, numa ferida no seu orgulho. A partir daqui torna-se evidente que o homem não é o centro do universo, é mais um microcosmos aleatório e efémero, lançado e perdido num mundo que não domina totalmente.
Em 1859, mais de 300 anos após a revolução coperniciana, um naturalista britânico chamado Charles Darwin publicou uma obra científica que ficaria conhecida para a posteridade na sua forma abreviada: A Origem das Espécies. Aqui surge, enquanto sistema, o evolucionismo, uma teoria biológico-filosófica que defende a ideia de que o próprio ser humano é um produto da evolução natural, ou seja, que o ser humano evoluiu – e continua a evoluir – a partir dos seus antepassados, nomeadamente a partir dos primatas ou grandes símios. Também aqui há um choque com o status mental vigente, que sempre postulou um dogma criacionista conjugado com uma psique humana de raiz metafísica ou teológica e nunca naturalística. Não foi fácil ao ser humano confrontar-se com o facto de descender dos primatas, animais considerados inferiores, e de não ser afinal um Adão divinizado, uma criação de Deus. O creatio ex nihilo cristão passa, definitivamente, para o foro da ilusão ou do desejo, simplesmente, e os filósofos materialistas já nos tinham falado nisso. Fica postulada dessa forma a segunda ferida narcísica, uma tomada de consciência de que somos mero produto evolutivo dentro de uma natureza feroz e cruel onde só os mais fortes sobrevivem. O orgulho daquele homem criado à imagem e semelhança de Deus tornou-se afinal a vergonha ou a impotência de ser-se apenas um entre muitos seres na natureza.
Finalmente, a terceira ferida narcísica remete-nos para o próprio Freud e as suas descobertas no âmbito da psicanálise. Freud chegou para mostrar que existem dentro do ser humano determinadas estruturas mentais que não são domináveis ou não estão ao alcance imediato do sujeito. Isto é, existe todo um mundo mental que não podemos dominar, que não podemos aceder, mas que determina a forma como somos e como vivemos. Os traumas, as neuroses, as psicoses ou os complexos, não são fruto de propriedades inatas e determináveis no ser humano, não existem enquanto qualidades apriorísticas no sujeito, mas sim qualidades moldadas pelo resultado das experiências existenciais. Há todo um mundo mental que não conhecemos e que não dominamos e que interage dialeticamente com o meio envolvente. Nesse sentido, esse novo mundo mental fere, uma vez mais, o ser humano no seu orgulho, pois limita o alcance da sua liberdade e da sua capacidade de poder fazer-se a si mesmo. A partir de Freud a vulnerabilidade do homem mostra-se em forma de crueldade e impotência, ferindo, claro está, o seu orgulho.
Ao longo dos tempos modernos, estes três acontecimentos foram condicionando de alguma forma o modo como as próprias sociedades evoluíram. Nos últimos tempos, principalmente no mundo ocidental, tem emanado, a partir da segunda ferida narcísica – o evolucionismo de Darwin – uma discussão interessante: os chamados Animal Rights, ou seja, os direitos dos animais. Como defende Keith Thomas, na sua obra O Homem e o Mundo Natural, “o predomínio do homem sobre o mundo animal e vegetal foi e é, afinal de contas, uma precondição básica da história humana”, e o Dicionário Oxford de Filosofia complementa: “los animales no humanos fueron hasta tempos bastante recientes objeto de un estatuto moral muy bajo”.
Se o ser humano é um produto da evolução e povoa o mundo não num sistema solipsista de usar, fruir e dispor, mas num sistema de desenvolver, partilhar e conviver, como devemos olhar, a partir daqui, para esses seres que caminham connosco, lado a lado?
O legislador português decidiu – e bem – que no final do ano transato chegara o momento de conduzir a sociedade a olhar os animais de uma forma diferente, mais inclusiva, menos especiesista, e mais humanista. O ponto de partida foi a abolição do sistema cartesiano que considerava os animais meros autómatos, capazes de um comportamento complexo, mas completamente incapazes de falar, raciocinar, ou mesmo de ter sensações. O animal não possuía qualquer dignidade, ou se a possuía, ela era equivalente à dignidade de uma coisa, de uma máquina. Depois, ao olhar para a tradição europeia, do século XVIII ao XX, o legislador ordinário português focou cinco momentos-chave para considerar uma nova forma de olhar os animais e fazer a sociedade evoluir por meio do direito.
Em primeiro lugar, o Parlamento olhou para o paradigma vigente, o sistema cartesiano, que pretendia revogar. A partir dessa tese, procurou a antítese nos filósofos utilitaristas, mais especificamente em Jeremias Bentham. Este filósofo colocou a questão primordial para desconstruir o paradigma cartesiano: “São os animais capazes de sofrer?” Esta será a questão fundamental a responder no sentido de se alargar a comunidade moral a outros animais. Os utilitaristas não apenas respondiam afirmativamente à questão como elaboravam mecanismos para conjugar o valor e os interesses dos animais e o princípio do “maior bem para o maior número”. A consideração dos interesses é um princípio filosófico que, para o próprio legislador, pode facilmente ser enquadrado no ordenamento jurídico, superando-se aí a primeira dificuldade na criação de um estatuto jurídico do animal.
Em segundo lugar, o legislador deparou-se com a doutrina que serviu de base aos debates em fóruns internacionais sobre a questão sub judice, nomeadamente Ruth Harrison, autora da obra Animal Machines, de 1964, que apelava a uma consciência coletiva pública para o bem-estar dos animais e para os efeitos nocivos da indústria pecuária com fins comerciais. Dessa forma, o enfoque jurídico no animal deve privilegiar sempre a censura aos tratamentos cruéis e a qualquer violência desnecessária.
Em terceiro lugar, olhou-se para uma certa jurisprudência vigente em outros ordenamentos jurídicos, nomeadamente no ramo anglo-saxónico que consagrava direitos aos animais desde a década de sessenta, a partir do chamado Relatório Brambell, um documento com o nome do veterinário Rogers Brambell, encomendado pelo governo britânico em 1965 e que identificava a falta de critérios na definição do que eram as condições de bem-estar animal. Tal escopo jurídico permitiu também fazer um exercício de prognose quanto à implementação de uma legislação de âmbito inovador e radical.
Em quarto lugar, estudaram-se-se as duas teorias filosóficas dominantes na actualidade: a teoria utilitarista de Peter Singer e a teoria deontológica de Tom Regan. Singer remete-nos, na sua filosofia, para a velha ideia de senciência, ou seja, a capacidade de sentir prazer e dor, e de igual consideração de interesses, isto é, na relação do homem com os animais deve-se agir sempre analisando os interesses em causa. Tom Regan propõe um alcance mais radical, levando-nos a considerar que a nossa comunidade moral deverá ser alargada aos outros animais, não em função de serem sencientes ou de possuírem interesses, mas sim em função destes serem seres conscientes que possuem uma vida que é sua e que deve ser vivida. Baseada na concepção kantiana de justiça, a teoria deontológica de Regan possui, no seu fundamento, o princípio de que todos os animais possuem direitos morais fundamentais, e que por esse motivo, os homens são obrigados a mudar as suas atitudes para com esses mesmos animais. O legislador não deixou de olhar, também, para a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO em 15.10.1978, o texto que define um telos para onde deve caminhar a humanidade.
Em quinto lugar, o órgão legiferante português ouviu o clamor da sociedade e compreendeu, de forma tímida diga-se, a profunda consciência social para a questão animal. Pretendeu, de alguma forma, dar uma resposta possível a uma revolução em curso.
Destes cinco pontos emergiu a Lei n.º 8/2017, de 3 de março, que estabeleceu o Estatuto Jurídico dos Animais. No essencial, o ordenamento jurídico nacional, bebendo da fonte utilitarista, passa a reconhecer os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade” e a conformar esse princípio com o Código Civil e o Código Penal. O art. 201º-B do Código Civil passa a definir animais, para os devidos efeitos jurídicos, como “seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza”. No artigo 1305º-A, n.º 1, por exemplo, o proprietário do animal tem a obrigação legal de assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie. Assegurar o bem-estar significa garantir o acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades específicas do animal, além de acesso a cuidados médico-veterinários justificáveis. O n.º 3 do presente artigo garante também que a mera posse ou direito de propriedade sobre um animal não garante ao possuidor ou proprietário o direito de infligir dor e sofrimento injustificado assim como pune o abandono ou a morte derivada de maus tratos.
Agora, cabe a cada um de nós, enquanto cidadãos, clamar por novos avanços na dignificação do trato animal. Podemos lutar, por exemplo, pela implementação em todo o país de um sistema de saúde animal tendencialmente gratuito. Podemos lutar pela abolição do uso de animais em circos, em espetáculos e em touradas. Podemos lutar pela proibição da utilização de animais em investigação científica, laboratorial e académica. E podemos, finalmente, lutar pela inserção e adaptação desta urgente temática nos planos curriculares de ensino.
Alguns afirmarão que estas lutas não passam de um sonho, mas podemos sempre citar Clotaldo de Pedro Calderón de La Barca: “ainda em sonhos, não há mal em fazer bem”.
Hélder Filipe Azevedo in vilanovaonline.pt