Objetividade dos valores

Os pragmatistas sempre tentaram eliminar a distinção radical entre fatos e valores. Os positivistas erigiram sobre essa distinção o seu castelo. Uma boa parte do saber popular é anti-pragmatista, pois aposta que enunciados avaliativos não são objetivos, enquanto que enunciados relatando fatos são objetivos.
O saber comum acredita que “O gato está sobre o tapete” é um enunciado objetivo. Há um gato, há um tapete, e o gato está deitado em cima do tapete. Vejo isso. A situação independe de mim. Relato isso que ocorre por meio da minha frase “O gato está sobre o tapete” e, assim, nada faço de subjetivo. Todavia, “O gato do tapete é dócil” não seria um enunciado objetivo, seria subjetivo. Sou eu quem avalio o gato, que pode muito bem ser dócil só para mim, ou ser dócil apenas aos meus olhos devido à noção que tenho previamente do que é ser um “gato dócil”, mas minha esposa, aqui do meu lado, que já foi arranhada por esse mesmo gato, é capaz de com convicção endossar a frase “O gato do tapete é bravo”. Ela tem outra impressão do gato.
A partir desse tipo de situação a maioria das pessoas imagina que juízos de fato e juízos de valor ou enunciados que relatam o que denominamos de fatos e enunciados que denominamos avaliativos são de ordens muito diferentes. E a diferença estaria na objetividade do primeiro em comparação com a não objetividade do segundo. Os positivistas sempre estiveram do lado popular, do lado dos que acreditam na divisão estanque entre fato e valores. Os pragmatistas nunca puderam aceitar isso.
Muitos dizem que os pragmatistas não aceitaram essa distinção porque unificaram tudo no anti-objetivismo. Não haveria objetividade de valores e nem de fatos. Entre os pragmatistas contemporâneos Richard Rorty levou a fama de ter defendido essa opinião. Ele chegou a afirmar que preferia apostar antes na solidariedade que na objetividade. E quando viu que alguns se desesperaram diante dessa sua tese, ele tentou acalmá-los. Então, ele também desenvolveu a tese de que não temos que ficar apavorados com isso, que tal tese não diz que cada um de nós vai poder falar o que quiser sem que possamos chegar a qualquer acordo. Ao contrário, sua tese dizia que nas nossas vidas cotidianas em geral mais concordamos que discordamos, e que nossas práticas de atividades solidárias nos levam a mais consensos que dissensos. Então, construímos uma quase universalidade consensual, ainda que para várias coisas, momentânea. Essa quase universalidade é bastante forte sobre uma série de frases que emitimos.
Há uma pequena distinção entre essa posição de Rorty, de quem fui amigo, e a posição de Davidson, de quem me tornei discípulo. Não digo que renego a posição de Rorty. Muito da filosofia de Rorty eu endossei e continuo endossando. Mas tanto ele quanto eu nunca conseguimos não ouvir Davidson. Mais que ouvir, penso que não teríamos que discordar de Davidson. Todavia, Davidson fala claramente que ele acredita em “objetividade de valores”.
Ou seja, Davidson puxa a sardinha para outro lado: não se trata de negar a distinção entre enunciados de fatos e enunciados de valores por conta de chamar ambos para o campo da não objetividade, e sim por conta de chamarmos ambos para o lado da objetividade.
Há uma série de detalhes técnicos na filosofia de Davidson para explicar essa sua posição. Mas há modos de falar dela, sem sair da filosofia, que nos permite explicar nossa própria posição – e a dele – a respeito do assunto sem ter de necessariamente nos embrenharmos nos detalhes técnicos, o que afastaria o leitor menos paciente com a filosofia. E o leitor menos paciente não é o leitor tolo, que não seria digno da filosofia – como alguns professores de filosofia afirmam, mais para se livrar de ter de explicar o que imaginam estar defendendo.
O recado que Davidson dá para os que querem falar em objetividade, seja a de valores como de qualquer outra coisa, é o seguinte: não procure objetividade nas coisas. Aparentemente isso é esquisito, não? As “coisas” não seriam os “objetos”, aquilo que deve estar no mundo, independentemente de nós, e sobre o qual podemos falar (ou não) de modo descritivo, “objetivo”? Caso sejam, não temos que olhar para elas para buscar objetividade? Não! A objetividade não é uma propriedade outra que não dos enunciados, então, é justamente para os enunciados que estão em jogo que dirigimos atenção. Temos de buscar o modo como processamos nossos enunciados. Temos de nos lembrar que não há uma relação nossa com os objetos do mundo. Nossa relação é triangular: falamos dos objetos do mundo a partir do momento que temos uma linguagem e essa linguagem é comunicação, ou seja, é uma produção que se fez por causa de que falamos dos objetos para outros e com outros e por causa de outros. Desde o início – tanto individual, pessoal, quanto epistemológico – de nossa atividade de usuários de alguma linguagem estamos em uma triangulação onde nossa relação com tudo que nos cerca está mediada pela conversa com outro sobre tudo que cerca esse outro, e que nós observamos juntamente com ele. E é na troca que fazemos entre o que esperamos dele diante do meio e o que ele espera de nós diante do meio, num jogo de êxitos e frustrações a respeito do que esperamos um do outro, que a comunicação se faz, ou seja, que a linguagem se desenvolve. Portanto, a objetividade, já de ponto de partida, é um elemento construído no interior da linguagem.
Voltemos ao “O gato do tapete é bravo” e “O gato do tapete é dócil”. Só porque não temos ainda consenso não significa que não tenhamos alguma objetividade possível aqui. Pois nossa conversa não vai terminar nisso, na repetição infantil dessas frases. Vamos conversar e vamos esperar a reação um do outro diante de atos do gato. Eu, que disse que o gato é dócil, o chamo e faço um afago, e olho para minha esposa e espero dela uma reação, que pode ser a de concordar com a cabeça e, então, eu começo a achar que ela vai abandonar a posição dela, de dizer que “O gato do tapete é bravo”. Mas logo em seguida eu fico frustrado, pois a reação da minha esposa é a de chamar o gato para tentar provocá-lo sutilmente e obter dele algum comportamento rebelde, a fim de desabonar o meu juízo sobre ele. Ora, isso significa que eu e minha esposa temos um alto grau de entendimento de nossas linguagens, e estamos triangulando de modo bem sofisticado, e que isso vai nos permitir chegar a algum tipo de objetividade de nossas frases. Mesmo que não viermos a chegar a um consenso total, vamos nos entender tanto que poderemos fazer mais frases, como por exemplo, “O gato do tapete é dócil, exceto quando puxamos uma de suas orelhas”.
Davidson lança mão da triangulação para mostrar isso. E na triangulação Davidson chama o conceito de verdade para ajudar. Ora, mas essa triangulação não está distante da idéia de solidariedade de Rorty. E talvez nem esteja tão distante da idéia de “consenso intersubjetivo” que aparece em Habermas. Cada um desses filósofos contemporâneos entrou por detalhes técnicos sobre as questões da objetividade, mas, acima disso, o que fizeram foi participar da idéia de que a objetividade depende da conversação contínua, e que ela é possível no terreno dos valores – quanto de outros terrenos – porque a conversação é o uso da linguagem, de alguma linguagem, e esse uso implica já em uma relação social que vem junto com a própria linguagem, que faz parte dos ossos e do sangue da linguagem. E a linguagem durante seu funcionamento é o contínuo exercício de se chegar a consensos momentâneos, mais ou menos duráveis. O que é isso senão o que chamamos de “objetivo”? Caso após uma enorme experiência dupla com o gato que falamos, eu e minha esposa não seríamos capazes de afirmar, por exemplo, que “O gato do tapete é dócil, exceto quando puxamos uma de suas orelhas” ou coisas do tipo? E sobre tal frase diríamos no mínimo algo como “há certa objetividade nessa nossa avaliação”.
Bem, mas e se no decorrer de muita experiência entre minha esposa, eu e o gato, não tivermos nenhuma frase que possamos chamar de objetiva, o que houve? A resposta de Davidson é a seguinte: do ponto de vista do intérprete [e é isso que somos: intérpretes] o que ocorreu é que ainda estamos com uma má interpretação na mão. Uma boa interpretação deverá nos dar algumas frases que mostrem nossas opiniões convergirem para algo, e aí não teremos muitos pruridos de dizer que o resultado é objetivo. Em outras palavras: há um background comum entre minha esposa e eu, e entre nós dois juntos com o gato, que nos dá a rede de conversação que fixamos sobre o assunto, e é isso que permite dizermos “verdadeiro” e “falso” para nossos enunciados, e inclusive sobre o gato ser dócil ou não. Então, por aproximação, vamos ter algumas frases que serão tentadoras para nós no sentido de que elas vão nos empurrar para atribuir a objetividade a elas.
Davidson insiste que ele não define a objetividade como sendo concordância. O que ele diz é que a objetividade não é impossível, no caso de valores ou qualquer outra coisa, já no ponto de partida, pois o caminho é ver que já estamos nos entendendo antes de começar a discutir sobre o gato, e que esse entendimento já é feito pelo compartilhamento de um background comum, e que isso já é nosso plano objetivo. Como construímos tal plano, então, há chances de colocarmos mais tijolos nele, ou seja, dar a ele mais frases objetivas, e uma delas sobre o assunto em pauta, sobre a questão do gato ser o não ser dócil.
Ora, em certo sentido, Davidson está dando a resposta que os estóicos e epicuristas deram aos céticos acadêmicos. Claro que nem os epicuristas e nem os estóicos deram uma resposta completa aos céticos, tão boa quanto a de Davidson. Mas o modo como eles agiram é comparativamente interessante.
Os céticos diziam que não podíamos justificar nossas crenças vindas dos sentidos. Os epicuristas jogaram contra eles o tudo e o nada. Disseram que tudo vinha dos sentidos, e que se não podíamos justificar o que sabemos então teríamos de acreditar que não sabíamos nada, e uma afirmação como esta não seria apenas uma auto-refutação, mas antes de tudo algo pouco plausível para quem está no mundo conversando como nós fazemos. Os estóicos disseram algo diferente. Eles falaram para os céticos que ninguém diz uma frase e fica nela, como que esperando o aval só dos sentidos, pois em geral, logo em seguida, quem diz uma frase ou escuta uma já passa a usar da razão sobre tal frase, para dizer mais coisas a seu respeito. Os estóicos poderiam ter dito, em seguida: e o uso da razão é o uso de nossa linguagem que é social. Não disseram. Caso dissessem essa segunda parte, teriam pulado para algumas posições contemporâneas. Seriam bem amigos de Davidson.
No limite, a aposta na objetividade, que Davidson leva adiante, está em acordo com Wittgenstein, como Davidson o leu. E nisso há um completo acordo com Rorty, ainda que às vezes a terminologia de Davidson e Rorty possa aparentar que há divergências entre eles maiores do que as que podemos desconsiderar. A aposta na objetividade a ser alcançada, como Davidson formula, a respeito de juízos de valores, vem da crença wittgensteiniana de que participamos de “jogos de linguagem”, e que a linguagem é uma “forma de vida”, e não um mero dispositivo lógico de nomeação. Quando sabemos a noção de algo por sabermos usar a linguagem, já sabemos a noção de um monte de outras coisas. Ou seja, já estamos inseridos e criados segundo uma “forma de vida”. A essa altura, já fizemos muitas afirmações que consideramos objetivas a respeito de mais coisas do que podemos enumerar. Então, uma a mais, não será impossível, será natural alcançá-la.
Ou seja, quando minha esposa e eu estamos discutindo se o gato é dócil ou não, já chegamos juntos a tantas frases que consideramos objetivas antes, só pelo fato de sermos usuários da linguagem, que seria uma loucura acreditar que não vamos chegar, a respeito disso, a frases objetivas sobre tal assunto. Acreditamos que vamos poder dizer, em um sentido específico, algo avaliativo e objetivo sobre o gênio do gato.
Bibliografia indicada:
Davidson, D. The objective of values. In: Problems of rationality. NY: Oxford University Press, 2004.
Ghiraldelli Jr., P. O que é pragmatismo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
Ghiraldelli Jr. P. O que é filosofia contemporânea. São Paulo: Brasiliense, 2008.
Irwin, T. Classical philosophy. NY: Oxford University Press, 2005.
© 2009 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo