Classificar e ordenar argumentos

(...) É possível verificar que várias são as formas de classificação de discursos, assim como são várias as formas de elaboração desses, através de esquemas básicos e complexos, cada qual com objetivos e funções diversas. Aristóteles talvez seja o mais minucioso colaborador nesse sentido, ao esquematizar e sistematizar desde os géneros de discurso até ao tipo de exemplos utilizados na argumentação. E é a partir de seus estudos que é possível analisar e classificar os argumentos e a construção desses. Aristóteles faz a distinção de três géneros de discurso: o discurso judicial, que consiste numa acusação ou defesa, com lugar num tribunal; o discurso deliberativo, que funciona como uma exortação ou ainda numa dissuasão numa assembleia e o discurso epidítico, que nada mais é do que um elogio. Como meios de prova ou formas de persuasão apresenta três: o logos (provas que se baseiam no conteúdo do próprio discurso), o ethos (provas que se baseiam no caráter do orador, de modo a inspirar a confiança do auditório) e o pathos (provas que se baseiam nas emoções ou paixões provocadas no auditório, de modo a impressionar o público favoravelmente em relação ao orador ou desfavoravelmente em relação ao adversário). Ainda segundo o filósofo, na organização do discurso podem ser observadas cinco etapas distintas: a invenção / inventio (heuresis) ou etapa argumentativa, em que se circunscreve o problema, procurando os argumentos que mais eficazmente persuadirão o auditório (e que implica a escolha de um dos três géneros oratórios); a disposição / dispositio (taxis), onde se ordenam e estruturam os argumentos de forma plausível e racional, com vista à resolução do problema; a elocução / elocutio (lexis), que diz respeito aos aspectos formais e estilísticos e finalmente a ação (hypocrisis), apoiada pela memorização (memoria). Como formas de raciocínio, Aristóteles apresenta o exemplo, como forma de raciocínio indutivo (permitindo a inferência de uma generalização a partir de um caso particular), o entimema (um silogismo retórico) como forma dedutiva e ainda a amplificação. Desde sempre foi reconhecida a necessidade de se ordenar as matérias a tratar a fim de mais facilmente se obter a adesão do auditório. Uma primeira forma de ordenação consiste em proceder à divisão do discurso em partes, segundo a específica função que cada uma delas exerce no contexto do argumento geral. Assim, o discurso retórico já era dividido em cinco partes: exórdio, narração, prova, refutação e peroração. Aristóteles, entretanto, chegou à conclusão de que um esquema composto por tantas partes, e tão minucioso, acabaria sendo válido apenas para um ou outro género oratório mas nunca para todos. A partir disso, o filósofo acabou por creditar apenas duas partes indispensáveis: o enunciado da tese e os meios de a provar. Perelman (1993) concordando com a divisão de Aristóteles, recorre uma vez mais ao confronto com a demonstração para justificar a importância que se deve atribuir à ordenação dos argumentos. Notemos, desde já, que numa demonstração puramente formal a ordem não tem importância;
(...) trata-se, com efeito, graças a uma inferência correta, de transferir para os teoremas o valor da verdade, atribuída por hipótese, aos axiomas. Ao invés, quando se trata de argumentar, tendo em vista obter a adesão de um auditório, a ordem é importante. Com efeito, a ordem de apresentação dos argumentos modifica as condições da sua aceitação. (PERELMAN, 1993: 159)
Mas o fato de se olhar para a divisão do discurso em duas partes verdadeiramente essenciais não significa que a primeira das divisões – exórdio, narração, prova, refutação, peroração – se revele totalmente inútil em termos de ordenação dos argumentos, e sim, apenas que não é um esquema inquestionável e aplicável à todos os discursos mas sim um modelo ideal de ordenação. No exórdio é que o interesse do auditório é despertado e a partir do interesse é criada nele uma predisposição favorável ao orador (e, consequentemente, à sua tese). O exórdio pode ser suprimido, por exemplo, se o orador já é bem conhecido do seu auditório. De qualquer modo, sempre que tenha lugar, o exórdio incidirá sobre o orador, o auditório, o tema ou sobre o adversário. No que diz respeito ao orador e ao adversário, Aristóteles diz que, de acordo com os casos, o exórdio visa fazer desaparecer um preconceito desfavorável ao orador ou criar um preconceito desfavorável ao adversário. No primeiro caso, é indispensável que o orador comece por aí; no segundo caso, ou seja, quando se trata de enfraquecer o adversário, o orador deve colocar os seus argumentos no fim do discurso, de modo a que o público dê maior destaque e se lembre mais da peroração. O lugar de um argumento deverá então ser determinado a partir de sua finalidade e do meio mais eficaz de a alcançar. A narração pode ser indispensável na maioria dos casos, mas quando o fato já é conhecido do público, pode ser suprimida. Não é indicado exagerar na descrição de fatos que o público já domina, numa sucessão de redundâncias, principalmente quando o interesse do público já é reconhecido. Já no discurso epidítico, tratando-se tanto de um elogio como de uma censura, a narração só se tornará indispensável se tais fatos forem ainda desconhecidos do público a que o discurso se dirige. Qualquer que seja a divisão do discurso escolhida, acima de tudo, sempre estará a questão de se determinar, mesmo no interior de cada uma das partes, qual a ordem pela qual se devem apresentar os diversos argumentos. Trabalhando com a força dos argumentos e a sua relação com a ordem em que estão dispostos dentro do texto, Perelman analisa as três principais ordens: a ordem da força crescente, a ordem da força decrescente e a ordem nestoriana. As três ordens apresentam vantagens e desvantagens. Na ordem crescente, o fato de se começar pelos argumentos mais fracos pode instalar uma certa letargia no auditório, que não fixa o que foi lido primeiro na sequência de argumentos. Na ordem decrescente, ao terminar o discurso com os argumentos mais fracos, o orador deixa no auditório uma impressão igualmente fraca, no sentido de, de forma oposta à ordem crescente, que todos os argumentos oferecidos anteriormente ao último e de mais força sejam ignorados. A ordem nestoriana, um meio-termo entre as outras duas ordens, não apresenta nenhum desses dois inconvenientes, na medida em que começa e acaba com argumentos fortes, mas tem contra si o fato de pressupor a força dos argumentos como uma grandeza imutável, não levando em consideração que a força de um argumento varia sempre em função do auditório e que este, por sua vez, também muda com o desenrolar do próprio discurso. É o que Perelman pretende mostrar quando afirma:
(...) se a argumentação do adversário impressionou o auditório, interessa refutá-la de início, em aplanar, por assim dizer, o terreno, antes de se apresentar os próprios argumentos. Ao invés, quando se fala em primeiro lugar, a refutação dos eventuais argumentos do adversário nunca precederá a prova da tese que se defende. Haverá muitas vezes, aliás, interesse em não as evocar para não dar aos argumentos do adversário um peso e uma presença que a sua evocação antecipada acaba, quase sempre por reforçar (PERELMAN, 1993: 151)
O que é importante é não perder de vista que a eficácia do discurso muda com o seu próprio desenrolar e que por isso mesmo, cada argumento deve surgir no momento em que possa exercer mais efeito e mostrar-se devidamente ajustado ao modo como os respectivos fatos vão sendo interpretados. Se a finalidade do discurso é persuadir o auditório, então a ordem dos argumentos não pode deixar de ser constantemente adaptada a tal finalidade. Além da ordem dos argumentos, é preciso também delimitar-se de que forma tais argumentos serão expostos para o público receptor da mensagem. Perelman propõe que existem dois tipos de argumentação, por associação e dissociação, e é através desses tipos de argumentos que se consegue maior ou menor relação com o público, de acordo com suas experiências, além de contribuir na construção do roteiro de leitura e sua relação com os objetivos propostos pelos emissores na construção das mensagens. Na argumentação por associação, (PERELMAN, 1993) é preciso se considerar, por exemplo: a) os argumentos quase lógicos – aqueles cuja estrutura os aproxima dos raciocínios lógicos. b) os argumentos fundados sobre a estrutura do real — a maior parte destes convoca as ligações de sucessão (causa-efeito), em que se enquadra o argumento pragmático, e as ligações de coexistência (pessoa-atos). Os argumentos do desperdício, do supérfluo e do decisivo fundamentam-se também na relação meio-fim, que, por sua vez, se liga ao argumento da direção (em que se apresenta determinado ato apenas como uma etapa), suscetível de ser completado pelo argumento da ultrapassagem (uma dada situação particular não constitui mais do que um ponto de partida para outra situação). c) argumentos que fundam a estrutura do real — são aqueles que recorrem ao exemplo e ao modelo. Argumentar pelo exemplo permite a passagem a uma generalização; o modelo constitui-se como algo a seguir ou, inversamente, a evitar.
Quanto à argumentação por dissociação, Perelman e Tyteca recorrem aos chamados pares filosóficos (por exemplo, aparência/realidade) no que a esta técnica argumentativa concerne e que envolve a ruptura de associações e noções previamente estabelecidas e aceites. Para Toulmin (2003), numa visão mais ligada à lógica, a disposição dos argumentos segue um esquema básico, onde as asserções levam a uma conclusão. Toulmin concebe como argumentos toda a espécie de conteúdos proposicionais (claims), aplicados em asserções: apresenta-se uma tese que convoca uma justificação (grounds). O interlocutor pode, em qualquer momento, pedir esclarecimentos quanto às justificações sobre que se edifica a tese proposta, sendo que essas justificações podem ser de várias ordens: dados, fatos/evidências, considerações, características. Um argumento, que é, para Toulmin, formalmente a articulação de, pelo menos, uma razão e de uma proposição que a prova, pertencerá a um campo específico; a articulação entre os elementos discursivos que desenham o esquema argumentativo de Toulmin formam uma célula argumentativa. A construção do discurso baseia-se na importância e na força dos argumentos escolhidos em contraponto à ligação entre locutor e auditório – a adesão às teses propostas é passível de reforço através de argumentos que se vão conduzindo, dependendo da amplitude da argumentação e até da ordem dos argumentos, e é isso que deve ser levado em consideração na construção de textos, que, como já dizia Descartes, antes de pretenderem levar alguma verdade ao auditório, devem ter clareza para apresentar as suas propostas.
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